Caciques e cacicas buscam patrocínio para a festa de cantos, tradição e comidas típicas que também vai chamar atenção para o problema do Marco Temporal e seus impactos na preservação ambiental
01 de fevereiro de 2024
Mariza Louven
Julho de 2024 será um mês de futebol em todo o mundo e nas aldeias situadas nas terras indígenas do Sul do Pará. Na mesma época em que acontece a Copa América, a Eurocopa e as partidas iniciais das Olimpíadas de Paris, a Associação Pore Kayapó quer realizar a primeira Copa Kranhkro-Turedjãm (KT) de futebol masculino nas aldeias Kranhkro e Turedjãm.
A notícia foi dada ao Carbon Report por Celso Ngronh-re Kayapó, produtor local de vídeos e divulgador da comunidade indígena Kranhkro, situada no Município de Ourilândia do Norte, no Pará. No mesmo dia (domingo, 28/1), lideranças indígenas se reuniram para discutir a Lei do Marco Temporal, aprovada pelo Congresso Nacional e promulgada em outubro de 2023, estabelecendo que só podem ser demarcadas as terras ocupadas por indígenas no ano da promulgação da Constituição Federal (1988).
Em carta aberta ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva, Celso Kayapó pede que a lei não seja sancionada e alerta para os impactos que pode ter: “Se isto acontecer, o calor, o efeito estufa, os temporais, os furacões e muitas outras tragédias continuarão acontecendo em maior intensidade no Brasil. A maioria destas coisas ocorrem por causa do desmatamento”, afirma no texto, que você pode ler aqui no Carbon Report.
“Queremos que um jogador profissional venha participar da abertura, além de antropólogos, jornalistas e universitários”, disse ele, num português com sotaque Jê, a língua dos Kayapó, e com algumas interrupções causadas por falhas na conexão de internet. A data prevista para a abertura do evento é 7 de julho. Os políticos do Congresso Nacional também estão sendo chamados para ver de perto a cultura local e parar de dizer que ela não existe.
Na aldeia Kayapó, a mais de 2.500 km de distância do Rio de Janeiro, onde esta matéria foi produzida, os braços estão abertos para quem quiser participar da festa.
Sobre o futebol na aldeia
É fácil entender porque uma comunidade indígera do interior do Pará se mobiliza para organizar um grande torneio de futebol: este é o esporte preferido pela maioria dos brasileiros e brasileiras. Difícil foi achar referências sobre a aldeia Kranhkro na internet, fundamental para complementar a checagem de dados.
O futebol fez parte das competições da primeira edição dos Jogos Mundiais dos Povos Indígenas de 2015, em Palmas (TO), porque atualmente é amplamente praticado pelos povos originários. Foi o único esporte “importado” incluído na edição do evento, focado em torneios tradicionais como o arco e flecha, que no passado era exclusivamente ferramenta de caça, ou arremesso de lança, instrumento de defesa.
A aldeia Kranhkro até já realizou a sua primeira Copa de futebol feminino, em 2021, informou Celso Kayapó. Segundo ele, nas comunidades indígenas da região, que também são lideradas por cacicas, a competição entre as mulheres veio primeiro.
Festa da inclusão na floresta
Agora, os Kranhkro e os Turedjãm esperam a participação de dezenas de pessoas na festa planejada para julho. “Pode ser brasiliero e até estrangeiro. Nós também estamos procurando apoio para a compra de uniformes, redes e bolas. É disso que estamos correndo atrás, através do Ministério de Esporte e da Secretaria de Esporte e Lazer”, acrescentou.
O evento não vai ser só futebol. “Vai ter canto, vai ter tradição, vai ter comidas típicas. Queremos mostrar a nossa cultura, além de preservar a floresta”, disse.
Na carta ao presidente Lula, Celso Kayapó convida especialmente os políticos: “Senhor Presidente, muito antes da chegada de Pedro Álvares Cabral, nossos antepassados já ocupavam estas terras. Nossos direitos territoriais foram assegurados pela Constituição que vocês elaboraram em 1988. Mas agora, muitos deputados, principalmente da bancada ruralista, querem limitar nossos direitos legais, chegando a afirmar que nem somos mais indígenas. Mas o que nos faz verdadeiramente indígenas é nossa essência, nossa língua e nossos territórios. Que estes deputados que dizem que nem somos mais indígenas, venham conhecer nossas aldeias e observar nossas tradições e constatem pessoalmente que temos nossa própria cultura, mesmo sendo todos brasileiros.”
Fora do mapa digital
São poucas as informações disponíveis a respeito da aldeia Kranhkro, com 397 habitantes. Isso também ajuda a entender porque o Kayapó quer inserir a localidade no mapa esportivo-cultural-digital.
A Escola Municipal de Ensino Infantil Tom Kore foi a chave para achar o nome da aldeia na web, mas com outra grafia: Kranhokro, com um o a mais. A explicação dele é que “A prefeitura está perto de nós mas, não escreve direito.”
Embora também não esteja georeferenciado, o centro educativo municipal aparece citado em documentos publicados pela prefeitura de Ourilândia.
“A aldeia não tem nenhuma divulgação”, explicou. Essa também é uma justificativa para o trabalho de divulgação que ele está fazendo.
“Povo Kayapó precisa muito de mim, porque não tinha cineasta, pessoal que mexe com vídeo. Eu aprendi a editar, aprendi filmagem. Faço tudo bacana. Lá por 2015, desisti de filmagem e fiquei só trabalhando, mas o pessoal reclamou muito. Quer voltar a mexer com audiovisual”, esclareceu. Ele disse que foi cineasta da Pastoral Indigenista.
A Associação Pore Kayapó, constituída recentemente num cartório de Belém, também não tem site. A entidade representa as aldeias Kranhkro, Kôkôku-êdjà, Potikrere e Juary. “A associação está construindo casas para a comunidade, entregando cacau e ajudando na agricultura familiar”, disse ele. O problema é que, formalmente, a sede está em Belém, “mas o presidente está providenciando a transferência para cá.”
Celso Kayapó destacou a importância da formação da primeira turma de alunos e alunas do ensino fundamental, no ano passado. O evento contou com a presença de políticos locais.
Assembleia de caciques
O contato de Celso Kayapó com o Carbon Report ocorreu pelo Facebook, porque ele queria saber mais sobre a matéria publicada pelo site no dia 24 de setembro do ano passado, a respeito do estudo inédito que confirma importância de territórios indígenas para mitigar mudanças climáticas.
Evoluiu para uma conversa pelo Whatsapp que abordou outros assuntos, como planejamento do torneio de futebol e a assembleia de caciques que estava acontecendo no mesmo dia (28/1), na aldeia Gorotire, situada no Município de Cumaru do Norte, para tratar do Plano de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA). Esta política pública promove a gestão territorial e ambiental sustentável em Terras Indígenas (TIs), contribuindo para a redução do desmatamento.
Na reunião das lideranças, os indígenas foram consultados sobre se o Supremo Tribunal Federal (STF) deve declarar a inconstitucionalidade da chamada Lei do Marco Temporal. Esta lei mobilizou comunidades em todo o Brasil, que lutam para garantir seus direitos e territórios tradicionais, anteriores à promulgação da Constituição.
Entre as instituições presentes, estavam a Associação Floresta Protegida (AFP), Associação Índígena Pore Kayapó, Associação Associação Indígena Piôkreke, Instituto Kabu, Associação Agrokrere Mebengokre, aldeia Kenouruware, Associação Indígena Tutu Pombo, Instituto Kabu e Instituto Raoni.
Território e preservação das florestas
A posse da terra implica a responsabilidade pela conservação de florestas, cerrados e sua biodiversidade. Essas são potentes soluções naturais de descarbonização e combate às mudanças climáticas.
Os Mebengokre, nome que pode ser traduzido como “Povo da morada das águas”, vivem em aldeias com 50 a 600 pessoas, numa região de transição entre o Cerrado e a Floresta Amazônica. No passado, foram “apelidados” de Kayapó e acabaram adotando este nome, mas Mebengokre é a autodenominação e a forma pela qual preferem ser chamados.