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Fato e fake nos relatórios de sustentabilidade

Fato e fake nos relatórios de sustentabilidade

O professor da USP e conselheiro da IFRS, Eduardo Flores, explica por que muita coisa vai mudar, principalmente nos relatos das companhias abertas, fundos de investimentos e securitizadoras

28 de março de 2024

Mariza Louven

Os relatórios corporativos de sustentabilidade das empresas brasileiras começaram a mudar este ano, para incorporar o reporte padronizado de iniciativas relacionadas à sustentabilidade em geral e ao clima, especificamente. E isso é só o começo, segundo o professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA) da Universidade de São Paulo (USP) e conselheiro da Fundação IFRS, Eduardo Flores. No primeiro momento, dada a relevância do aquecimento global e das mudanças climáticas, o foco da normatização é o clima, mas a tendência é surgirem outros quesitos que ajudem a distinguir o que é fato e o que é fake.

“Potencialmente virão as normas IFRS S3, IFRS S4…, dando conta, por exemplo, de aspectos como biodiversidade, relações de trabalho e outros, dentro de um espectro mais amplo de sustentabilidade”, afirma.

Em paralelo, o Conselho Federal de Contabilidade, por meio do Comitê de Pronunciamentos Contábeis, também está finalizando uma norma para registro das operações com créditos de carbono, mirando os relatórios contábeis. A regra vai valer para empresas de todos os setores, tanto em operações no mercado voluntário quanto no regulado, que está prestes a ser instituído no Brasil.

Para que tudo isso? Para tornar o conteúdo dos relatórios de sustentabilidade elaborados e divulgados pelas empresas mais próximos da realidade, evitando tambémo greenwashing ou propaganda enganosa. “Para distinguir entre uma narrativa baseada em intenções de uma narrativa consubstanciada em fatos”, resume Flores. Já a contabilização correta das operações com créditos de carbono vai impactar o mercado voluntário, que funciona com regras próprias e sem padrão.

Sopa de letrinhas

A Fundação IFRS dá nome a dois novos padrões internacionais para relato de sustentabilidade e de riscos e oportunidades climáticos, respectivamente, o IFRS S1 e o IFRS S2, divulgados em meados do ano passado pelo International Sustainability Standards Board (ISSB), um órgão sob o guarda-chuva da IFRS.

Essas duas normas já podem ser adotadas voluntariamente por companhias abertas, fundos de investimento e securitizadoras no Brasil, de acordo com a Resolução 193 da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), mas em 2026 serão obrigatórias.

O padrão IFRS S1 é um conjunto de princípios fundamentais para a elaboração de um relatório de sustentabilidade. Já o IFRS S2 é uma revisão de um protótipo de norma do Grupo de Trabalho sobre Divulgações Financeiras Relacionadas com o Clima (Task Force on Climate-Related Financial Disclosures – TCFD), que nasceu por iniciativa do Financial Stability Board (FSB), com foco nas instituições financeiras. O padrão foi revisado sob uma perspectiva plurissetorial para ser aplicado também por outros segmentos.

A Fundação IFRS também abriga o Conselho Internacional de Normas Contábeis (International Accounting Standards Board – IASB), instituição que emite as normas internacionais de contabilidade para relatórios financeiros. No Brasil, esses padrões são recebidos pelo Comitê de Pronunciamentos Contábeis (CPC) e, mais recentemente, pelo Comitê Brasileiro se Pronunciamentos de Sustentabilidade (CBPS), do qual Flores é coordenador técnico.

Fato e fake

Por que a Fundação IFRS, que originalmente emitia normas internacionais de contabilidade, foi se imiscuir no mundo da sustentabilidade? Porque recebeu vários pedidos por parte de investidores, de agentes alocadores de capitais e autarquias reguladoras para estudar a possibilidade de criar um padrão internacional de relatórios de sustentabilidade.

No passado, cada país tinha o seu padrão contábil e suas regras específicas, diz o professor. O grande problema era que não havia comparabilidade entre os relatórios. O lucro de uma empresa anteriormente sediada na Alemanha, por exemplo, e o de outra sediada na França eram obtidos por critérios muitas vezes assimétricos entre si. O mesmo acontece hoje com os relatórios de sustentabilidade e também na contabilidade do carbono.

“Como usuário dessa informação, você não consegue saber, por exemplo, se a métrica de emissão de carbono do relatório A é comparável com a do B, se o conceito de materialidade de A é igual ao de B”.

Segundo ele, existe uma literatura bastante validada sobre assimetria informacional, ou o fato de algumas pessoas saberem mais sobre determinado contexto do que outras. Isso pode acontecer em situações que vão desde o investimento feito por um fundo de pensão à compra e venda de produtos e serviços.

“O uso dessa assimetria para interesses próprios leva muitas vezes ao conceito do insider trading e a um prejuízo maior, de médio e longo prazos, que é uma certa descrença da informação, que vai resvalar numa piora do ambiente econômico”, analisa. A assimetria regulatória faz com que seja possível as empresas escolherem métricas de acordo com o que querem divulgar e não com o que deveriam divulgar, completa.

Treino para o verdadeiro jogo

O ideal é as empresas começarem a se adaptar o quanto antes para o que vem à frente, opina Flores. Não é só chamar uma consultoria, achar que vai entregar meia dúzia de informações e receber um relatório de sustentabilidade dentro dos novos padrões.

“O relatório terá que ser auditável. A informação que estiver lá tem que ser substanciada no sentido de permitir que o auditor independente possa emitir uma opinião de acordo com o padrão que está sendo estabelecido. Essas informações tem que ser objeto de uma espécie de controle interno da companhia, ou seja, há toda uma infraestrutura a ser construída, incluindo o aspecto educacional, porque muitas dessas requisições vão recair sobre os departamentos financeiros e muita gente que hoje faz relatórios de contabilidade não tem expertise para fazer o relatório de sustentabilidade.”

Segundo ele, a vantagem do “treino” é desenvolver o aculturamento para o “jogo”, numa mentalidade muito parecida com a de elaboração do relatório contábil. Um operador de hotéis em área costeira, por exemplo, está sujeito a uma elevação do nível do mar. Quanto ele perde de área útil da propriedade, se isso acontecer? É um estudo que tem que ser feito.

Se, no futuro, os relatórios financeiro e de sustentabilidade vão compor um documento único? Na opinião dele, não é certo que isso aconteça, mas é preciso que esses relatórios não tragam mensagens distorcidas ou antagônicas entre si. “Independente se vão ser elaborados numa única plataforma ou em plataformas distintas, eles não podem ter contradições, porque ao fim e ao cabo, falam sobre a mesma empresa.”

A contabilização dos créditos de carbono

O mercado regulado de carbono, ainda não instituído no Brasil, facilita a lógica contábil, explica Flores. No sistema cap and trade, previsto para o país na regulamentação que tramita no Congresso, são estabelecidas metas anuais de emissões de gases de efeito estufa pelas empresas de alguns setores específicos. Se no fim do período a empresa superar o limite de emissões determinado pela lei, tem que comprar créditos para fazer a compensação mandatória e não voluntária.

“Do ponto de vista contábil, se uma empresa recebe o crédito de carbono, automaticamente registra um ativo; se lá na frente percebe que extrapolou o seu limite de emissões, tem uma obrigação, um passivo”, explica.

Atualmente, a identificação desses ativos e passivos, com base em operações no mercado voluntário, é mais difícil do ponto de vista contábil, porque é mais subjetiva. “Quando nasce, de fato, uma obrigação para uma empresa, decorrente de um anúncio que ela mesma fez, ou seja, de uma autoimposição. Vale no ato do anúncio ou no momento em que ela disse que ia fazer alguma coisa?”

O documento que vai originar a norma de contabilidade de carbono está passando por uma fase de sumarização dos comentários apresentados durante a audiência pública, que terminou em outubro de 2023. A expectativa é de que a nova regra seja publicada pelo Conselho Federal de Contabilidade em junho. Basicamente, estão sendo avaliadas as alterações produzidas em decorrência da audiência pública. Se não forem só de forma, mas também de conteúdo, pode ser necessária mais uma audiência pública.

Custo versus benefício

O argumento de que pode haver aumento de custo para as empresas é válido, na opinião de Flores. “A regulação, de fato, impõe alguns custos de obediência e reduz a liberdade. Não existe almoço grátis”, afirma. Mas ele chama a atenção para a importância de olhar o outro lado.

Muitas decisões de compras e de negócios são tomadas, hoje, com base na narrativa das empresas sobre a sua sustentabilidade. Isso tem consequências que vão desde a opção pela compra de green bonds ao investimento de fundos de pensão em empresas que têm uma agenda socioeconômica, passando por consumidores que decidem adquirir produtos e serviços anunciados como carbono zero.

“Dizer que será net zero, para fins de gestão do modelo de negócio, é muito sério”, porque implica em investimento substancial, em despesa de capital.

Quando a empresa diz que vai ser net zero em 2030, está passando uma mensagem para o mercado, gerando expectativas em credores, investidores, consumidores. “Não tem como dizer que vai tomar a decisão de ser net zero se não enxergar um benefício econômico social ou econômico ambiental. Quer porque consegue vender seus produtos para um público que antes não vendia, por um preço que não conseguia ou porque passa a conseguir captar funding com um custo mais barato. Diversas possibilidades decorrem desse tipo de anúncio.

Essa questão da regulação tem que ser vista com um olhar complacente para os dois lados. Não posso estrangular a empresa ao ponto de ela perder a capacidade de gestão de negócio, nem deixar solto demais, ao ponto de amanhã ou depois meia dúzia de empresas que não fizeram uma divulgação adequada contaminarem todas as outras que estão fazendo o seu papel”, opina.

“Se não tem um sistema padronizado para que as informações sejam elaboradas de maneira correta, técnica e fidedigna, pode ocorrer o mesmo problema da década de 1920 nos Estados Unidos, em maior ou menor escala”, argumenta. Flores diz que uma das constatações sobre a crise de 1929, no mercado americano de capitais, é de que ela decorreu da falta de padronização contábil. Na época, as empresas elaboravam suas demonstrações financeiras com critérios próprios.