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O negacionismo do aquecimento global: razões de ordem psíquica

Resistir em admitir nossa impossibilidade de solucionar o problema sem rever nossos modelos de exploração tem voltado sobre nós mesmos nossos impulsos mais agressivos e mortíferos

Resistir em admitir nossa impossibilidade de solucionar o problema sem rever nossos modelos de exploração tem voltado sobre nós mesmos nossos impulsos mais agressivos e mortíferos

27 de maio de 2024

Por Leandro Faro*

O “não” inexiste para o inconsciente.

Em termos clínicos, para a psicanálise, toda vez que determinado paciente nos apresenta uma negativa, como por exemplo: “Eu não tive a intenção de ofendê-lo”, podemos simplesmente considerar que teve sim aquele objetivo. Não apenas isso… que a intenção de ofender teve de ser severamente reprimida, a ponto de só poder se manifestar como conteúdo, na medida em que fora negada. Freud diria que o “não” é um emblema, uma espécie de “Made in China”, da repressão.

Não é difícil, por isso, compreender o quanto o recurso à negação é significativo para o discurso conservador. Afinal, diante da angústia do futuro incerto, negar qualquer mudança, mantém o mundo ordenado e seguro, e por isso, é um recurso para mantê-lo “funcionando como sempre funcionou”. Porém, sob o emblema do negacionismo climático, viramos todos conservadores.

O intenso medo da mudança que justifica a negação conservadora, sob as evidências do aquecimento global, deixa de representar uma simples defesa do “mundo tal qual deveria ser”. O antigo perigo de ter que abdicar do passado ante as mudanças que nos obrigam a pensar em inovações para o presente, torna-se, pela negação do óbvio, uma carta delirante de suicídio. Nem mesmo a proteção das cidades, que antes sustentava a ilusão de separação entre nós e a natureza, tem nos protegido da calamidade que hoje adentra em nossos lares.

Tal qual na interpretação clínica da negação, o “não” tem dado evidência do nosso empuxo à aniquilação. O combate à própria ciência, a serviço da manutenção da aquisição material garantida pelo atual modelo de exploração violenta sobre a natureza não tem servido para nos proteger da angústia. Os recursos para isso tem sido inovadores: a valorização de um tipo bem peculiar de teologia fundamentalista, um certo “terraplanismo” em oposição às evidências científicas, e o apelo à concorrência como justificativa para manutenção dos velhos hábitos na busca por crescimento econômico.

As antigas estruturas da nossa cultura ocidental – a ideia de que fomos forjados para dominar sobre a natureza, a noção religiosa do “crescei-vos e multiplicai-vos”, e o olhar empírico sobre a realidade como alicerce da ciência – hoje decaem como principais fundamentos da nossa própria alienação. São motivadores para o próprio discurso negacionista. Fala-se de uma relação mais simbiótica e responsável sobre os recursos naturais; e ao mesmo tempo, o apelo ambiental perde sua força, ante as demandas por progresso material e pela necessidade de nos proteger do outro.

Afinal, foram amparados nessas mesmas ideias que o atual sistema político e econômico fora forjado. Ainda compreendemos a noção de prosperidade e de crescimento econômico baseado nessa ideia de exploração permanente dos recursos naturais. Pensar diferente disso corresponde a uma ameaça real ao desenvolvimento financeiro e aos interesses políticos.

Se precisamos, para controlar a realidade e medir nosso progresso, do mínimo de estabilidade, admitir os impactos desse modelo de exploração que nos garantia nossa capacidade de previsão, significa reconhecer a necessidade de mudanças concretas no estilo de vida e na política, para os indivíduos, para as organizações, e mesmo para os estados. Representa sobretudo uma ameaça à concorrência, ao controle e à autonomia que almejamos em nossas tomadas de decisão, produzindo resistência em aceitar a nova realidade decorrente dos impactos do aquecimento global sobre nossa existência. Sem opções concretas de superação do “bom e velho” modelo de exploração violenta dos nossos recursos naturais, todos carecemos de respostas claras que nos permitam pensar em um novo modelo que garanta nossa sobrevivência.

Como resultado, negar os impactos do nosso atual modelo de exploração sobre a natureza significa promover o perigoso engano sobre a irreversibilidade do nosso fim anunciado. Nos coloca a serviço da pulsão de morte: circular porque nos prende numa eterna repetição dos nossos hábitos mais mortíferos, e avesso à mudança, pois nos mantém na inação impedindo qualquer forma de romper o ciclo de morte e degradação. Tornamo-nos a todos algozes e vítimas de nós mesmos, na medida em que, conforme a provocação de que “é mais fácil pensar no fim do mundo do que no fim do capitalismo”, surge como possibilidade, entregues ao desespero da total ausência de soluções, ou de encarar nossos próprios erros; que voltam violentamente sobre nós com toda a força da frustração, ou se volta contra o outro, tornando-o culpado sobre nossa própria incapacidade de romper esse ciclo.

Em outras palavras, o conflito produzido pela não admissão da nossa impossibilidade de solucionar o problema sem a promoção de mudanças profundas na forma em que nos organizamos enquanto sociedade, produz repressão, revertida em impulsos agressivos e mortíferos. Quando as informações que recebemos sobre as mudanças climáticas entram em conflito com nossas mais profundas crenças ou com os interesses econômicos mobilizadores das próprias políticas nacionais, isso acaba aprofundando ainda mais nosso medo ante a realidade que nos ameaça. Para reduzir esse desconforto, reprimimos a realidade do aquecimento global, criando artifícios que produzam intenso estado de negação, ao mesmo tempo voltando toda força da frustração causada pela ausência de soluções sobre nós mesmos, e sobre o outro, que se torna nesse processo o grande culpado pela calamidade.

Tal como numa nova Idade Média, onde impera a incerteza ante o mistério da existência ou a formulação de teorias conspiratórias das mais variadas roupagens, sustentando esse estado profundo de negação, o mundo torna-se cada vez mais incompreensível e nossas certezas mais fundamentais inflacionam o impacto dos nossos erros, nos conduzindo rumo ao apocalipse.


*Leandro Faro é psicanalista