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Regras do fundo de perdas e danos é tema obrigatório na conferência do clima da ONU de Dubai

Regras do fundo de perdas e danos é tema obrigatório na conferência do clima da ONU de Dubai

Conflitos na Ucrânia e em Israel podem provocar interferências diretas na política climática global, afirma ao Carbon Report o sócio do Campos Mello Advogados, Vilmar Gonçalves

Mariza Louven

As duas guerras em curso, na Ucrânia e em Israel, têm efeitos humanitários desastrosos e ameaçam a segurança alimentar e energética. É nesse contexto que será realizada a 28ª Conferência do Clima das Nações Unidas (COP28), em Dubai, nos Emirados Árabes Unidos. Para o sócio e head da área ambiental do Campos Mello Advogados, Vilmar Gonçalves, o cenário desafiador dificulta ainda mais a tão esperada implementação dos mecanismos de financiamento à adaptação e mitigação climática dos países em desenvolvimento e mais vulneráveis. As políticas energéticas das nações desenvolvidas para reduzir ou eliminar a dependência do petróleo e do gás natural também estão sob risco.

sócio e head da área ambiental do Campos Mello Advogados, Vilmar Gonçalves

Parece inevitável discutir a crise humanitária gerada pelas guerras em curso e o impacto sobre os esforços da comunidade internacional a respeito dos compromissos assumidos após o Acordo de Paris. Notadamente na Europa, que, diante da invasão da Ucrânia pela Rússia passou ajustar sua política energética de modo a reduzir ou eliminar, em médio e longo prazos, a dependência de petróleo e gás natural fornecidos anteriormente, em grande escala, pela Rússia. Tudo isso somado ao fato de que as próprias guerras proporcionam a emissão de um grande volume de gases de efeito estufa, circunstância que pode ser capaz de interferir diretamente na política climática em escala global”, comenta.

A seguir, a entrevista com Vilmar Gonçalves.


Carbon Report: Quais são os temas que deverão dominar o debate durante a COP28, que começa daqui a pouco mais de um mês em Dubai?

Vilmar Gonçalves: A COP 27 terminou com alguns pontos de discussão em aberto e que devem retornar à pauta na COP 28. Dois deles são o financiamento climático e o reforço do compromisso assumido com assinatura do Acordo de Paris em 2015, de limitar o aquecimento global a 2 ºC, preferencialmente em até 1,5 ºC, considerando o período pré-industrial. Isso exige dos signatários a apresentação de metas renovadas e iniciativas adotadas em âmbito nacional que tratem da descarbonização da economia e fomento à economia verde, incluído de maneira tímida na declaração final da conferência. Acredito que haverá novas discussões a respeito da meta de limitação do aquecimento global e o impacto da mudança climática sobre a segurança alimentar no mundo.

Carbon Report: Que outros assuntos devem dominar o debate?

Gonçalves: Parece inevitável discutir a crise humanitária gerada pelas guerras em curso e o impacto sobre os esforços da comunidade internacional a respeito dos compromissos assumidos após o Acordo de Paris. Notadamente na Europa, que, diante da invasão da Ucrânia pela Rússia passou ajustar sua política energética de modo a reduzir ou eliminar, em médio e longo prazos, a dependência de petróleo e gás natural fornecidos anteriormente, em grande escala, pela Rússia. Tudo isso somado ao fato de que as próprias guerras proporcionam a emissão de um grande volume de gases de efeito estufa, circunstância que pode ser capaz de interferir diretamente na política climática em escala global.

Carbon Report: Ano passado, na COP27, em Sharm-El-Sheik, no Egito, uma das preocupações era de que a guerra da Ucrânia não fosse usada como desculpa para recuos nos esforços globais de descarbonização. Este ano, uma nova guerra está em curso em Israel. A COP28 pode ser marcada por um retrocesso na geopolítica do carbono?

Gonçalves: As guerras, em si, são desafios que a ONU enfrenta no contexto da representação dos interesses internacionais comuns de paz e desenvolvimento sustentável. O próprio Conselho de Segurança da ONU tem seu formato criticado ao longo dos anos, inclusive pelo Brasil, assim como a pouca efetividade de suas decisões para conter os conflitos armados em curso. Somado a isso, a COP 27 resultou em declaração final tímida considerando a meta de limitação do aquecimento global mais significativa adotada com a assinatura do Acordo de Paris, que seria preferencialmente de até 1,5 grau Celsius em relação ao período pré-industrial. Isso significaria exigir, com certo rigor, que os países apresentem as iniciativas legislativas ou administrativas que estão adotando em relação às metas de redução de emissão de gases de efeito estufa, considerando o foco de neutralidade até 2050 e a própria descarbonização da economia, e os resultados relacionados à respectiva contribuição nacionalmente determinada (NDC, na sigla em inglês).

Carbon Report: Como evitar o desmonte da mobilização climática?

Gonçalves: Entendo que, para evitar um retrocesso na geopolítica do carbono, a ONU precisará reforçar, durante as reuniões com os líderes mundiais e na própria declaração final do evento, os compromissos anteriormente assumidos.

Carbon Report: A COP28 pode ser, finalmente, a COP da implementação do financiamento climático, que era esperado para a COP27, mas não aconteceu completamente?

Gonçalves: É esperado que o tema do financiamento climático retorne à pauta de discussão, mas sob o risco de outros temas relevantes, como as guerras em curso e segurança energética, dificultarem deliberações mais concretas que versem sobre a implementação de instrumento econômico adequado para que países em desenvolvimento preservem e/ou recuperem sua biodiversidade como importante fonte redutora de gases de efeito estufa e estimulem a bioeconomia.

Carbon Report: Como fica a questão do fundo para cobrir perdas e danos causados por desastres climáticos?

Gonçalves: Acredito que a definição das regras do fundo de perdas e danos dos países vulneráveis em relação aos efeitos da mudança climática, aprovado na COP27, seja um tema obrigatório na nova conferência das Partes. Ficou estabelecido na COP 27 que, este ano, seriam analisadas as recomendações que serão trazidas pelo comitê criado para esta finalidade. Isso inclui deliberação sobre os países que participarão do fundo e quanto seria destinado aos países mais vulneráveis. Seguindo o racional do que foi discutido na Pré-Conferência de Bonn, realizada em 2023, também entendo que serão abordados temas sobre o fundo clima, transição energética e mercado global de carbono, além da Avaliação Global sobre o progresso dos Estados-membros.

Carbon Report: O que se espera da COP28 em termos de operacionalização do fundo de perdas e danos?

Gonçalves: Como não houve consenso na Pré-Conferência de Bonn sobre o tema, espera-se que a discussão sobre a criação e operacionalização da chamada de Rede de Santiago sobre perdas e danos, criada pela COP 25, avance, principalmente no que diz respeito à titularidade do secretariado/coordenação dessa Rede. Costumo ser cético em relação à possibilidade de se extrair da COP deliberações ou textos que prontamente disciplinem um tema de natureza tão complexa.

Carbon Report: Quais são as perspectivas concretas sobre os recursos para perdas e danos?

Gonçalves: Mesmo que estejamos na torcida para que o melhor aconteça, me parece existirem etapas prévias que precisam ser discutidas e que, caso não sejam adequadamente superadas por ampla coalizão, podem inviabilizar o aprofundamento do tema. Um exemplo é a definição ou extensão dos países vulneráveis, quem será responsável pela gestão destes recursos – lembrando que os países que integram o G77 se opõem à tentativa de transferir ao Banco Mundial a centralização destes recursos – e quem deve assumir o custo de investimento desse fundo.  

Carbon Report: E o compromisso assumido dos países desenvolvidos de destinar US$ 100 bilhões por ano aos países em desenvolvimento para custear medidas de prevenção e combate à mudança climática, juntamente com a implementação do fundo de perdas e danos?

Gonçalves: Isso é peça-chave para o cumprimento das metas do Acordo de Paris. Trata-se de mecanismo que expressa adequadamente o princípio das responsabilidades comuns, mas diferenciadas, e de acordo com as respectivas condições materiais de cada Estado-Nação. Isso não pode servir para amenizar o compromisso na adoção de medidas adicionais, tanto por países desenvolvidos, quanto pelas nações em desenvolvimento, que visem descarbonizar a economia e estimular a transição energética.

Carbon Report: Houve avanços, ao longo deste ano, nos debates sobre o Programa de Trabalho de Mitigação, que deve começar a ser implementado na COP28?

Gonçalves: Houve grande avanço nas discussões sobre o tema, com engajamento dos Estados-membros, mesmo que com posições distintas sobre a sua definição e escopo dos trabalhos, que acabam se confundindo com a agenda de medidas de resposta. Sem dúvida, são esperadas informações sobre as análises e reuniões ocorridas durante o ano a respeito do objetivo central do Programa de Trabalho de Mitigação, que é tratar de ações concretas, adotadas pelos Estados membros, visando o atendimento da meta de limitação do aquecimento global estabelecida pelo Acordo de Paris. Na minha opinião, o sucesso desse Programa passa pela qualidade das informações trazidas sobre exemplos exitosos desenvolvidos pelos países, de forma individual ou cooperativa, ou, ainda, como essas iniciativas efetivamente podem contribuir com o objetivo principal de limitação do aquecimento global. Além disso, essa discussão passa necessariamente pelo financiamento climático, tema que também precisará ser aprofundado durante a COP28.

Carbon Report: Especificamente em relação ao Brasil, quais são as principais expectativas?

Gonçalves: O Brasil tem se mobilizado para atuação conjunta, ou em bloco, dos países que compõem a Amazônia durante a COP28, o que pressuporia a intenção de criar uma política unitária desses países na defesa dos seus interesses. Notadamente pela responsabilidade de manter áreas de florestas em pé, extremamente relevante para o planeta em um contexto de mudança climática. Não se sabe se tal iniciativa prosperará, mas acredito que o Brasil atrairá a curiosidade da comunidade internacional para conhecer mais detalhes sobre o Plano de Transição Ecológica.

Carbon Report: Qual é a sua opinião sobre o plano?

Gonçalves: Este plano, anunciado em agosto deste ano, possui eixos principais que passam por uso de instrumentos financeiros, fiscais e regulatórios como forma de viabilizar política, econômica e juridicamente introdução de linhas de crédito voltadas para atividades de desenvolvimento econômico sustentável, criação do mercado regulado de carbono, reformulação do Fundo Clima e estímulo à transição energética através do uso e ampliação de fontes renováveis, entre outras iniciativas. Entretanto, me parece que a principal é resgatar a posição do Brasil como um país que mantém uma política interna de proteção ambiental e foco no atingimento da meta de redução das emissões de gases de efeito estufa em linha com os compromissos firmados pelo país diante da comunidade internacional. Isso pode conferir a ele novo papel de liderança nesta nova etapa que se avizinha, de incentivo à bioeconomia e a mecanismos de compensação de crédito de carbono.

Carbon Report: O governo Lula apresentou uma nova NDC. Este será o principal feito a ser levado para a COP28, além da queda do desmatamento da Amazônia?

Gonçalves: Na verdade, o atual governo apresentou um pedido de correção da meta climática brasileira na Cúpula da Ambição Climática da ONU, iniciativa que passou por deliberação do Comitê Interministerial sobre Mudança do Clima. A dúvida é se tal iniciativa será apenas de cunho político, ou seja, desacompanhada de ações concretas, tanto no campo legislativo, regulatório e financeiro. Em todo caso, é importante lembrar que essa iniciativa é de apenas resgatar o que ficou estabelecido à época da formalização do Acordo de Paris, afastando as mudanças dos limites de redução da emissão de gases de efeito estufa anunciadas pelo governo anterior.

Carbon Report: E o desmatamento?

Gonçalves: Já a queda do nível de desmatamento é um dado relevante e reforça o compromisso anunciado em campanha eleitoral de que o atual presidente dedicaria foco ao papel fiscalizador desempenhado pelos órgãos públicos federais. Resta saber se a queda é sustentável, fruto de maior investimento em recursos materiais e humanos para ampliar o combate à desflorestamento ilegal, ou apenas dado de momento. Além disso, pautas como regulação de crédito de carbono e transição energética, com foco em projetos como os de eólica offshore, precisam ser tratadas pelo Governo Federal como prioritárias. O Brasil sempre teve papel relevante nas discussões envolvendo a preocupação com o impacto das atividades antrópicas sobre o meio ambiente e, por possuir uma vasta biodiversidade e estoque florestal, precisa direcionar sua participação a partir da premissa de que a crise climática oferece ao país uma oportunidade única de se colocar como polo central em investimentos relacionados à bioeconomia.

Carbon Report: Mesmo que ainda seja aprovada antes da COP28, a regulamentação do mercado de carbono poderia ser destaque?

Vilmar Gonçalves: Entendo que a regulação do mercado de carbono, com a criação do Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases do Efeito Estufa, é medida imperativa para países que, como o Brasil, buscam efetivamente adotar mecanismos regulatórios que incentivem cada vez mais o desenvolvimento de atividades geradoras de crédito e que, em última análise, podem resultar em aumento dos níveis de manutenção de florestas em pé, além de fomentarem a criação do tão desejado Mercado Global de Crédito de Carbono.

Carbon Report: O fato de o Projeto de Lei do mercado de carbono prever a implementação em até cinco anos, além de não ter sido incluída a produção agropecuária primária, diminui o peso da iniciativa?

Vilmar Gonçalves: Acredito que, mesmo sem a inclusão da atividade agropecuária primária no projeto aprovado recentemente pelo Senado Federal (PL 412/2022), não há comprometimento da importância das diretrizes estabelecidas, até mesmo porque o projeto não conflita com a possibilidade de o mercado voluntário ser ainda mais desenvolvido, inclusive, pelo setor agropecuário.