Sabedoria indígena combinada à ciência moderna é a base do polo biotecnológico e turístico de Belterra, numa área da selva amazônica com 540 km 2, onde vivem 1.200 famílias
Mariza Louven
O conhecimento de uma civilização amazônica ancestral, combinado à tecnologia moderna, pode ajudar a salvar o mundo dos efeitos das mudanças climáticas e ainda melhorar a saúde da humanidade. O Museu de Ciência da Amazônia (MuCA), localizado em Belterra, no Pará, está resgatando o legado do povo antigo, que viveu no encontro dos rios Amazonas e Tocantins, para criar uma bioindústria capaz de gerar renda para 1.200 famílias e proteger 540 km2 de floresta, por meio da produção de madeira rastreável, alimentos e fitoterápicos potentes, créditos de carbono e turismo.
“Estamos revelando a Machu Picchu brasileira”, afirma o diretor do MuCA, Luiz Felipe Moura, numa alusão à “cidade perdida” do Império Inca, descoberta em 1911 no alto das montanhas do Peru e considerada uma das sete maravilhas do mundo. A arqueologia já revelou que na região onde o MuCA está instalado viveu uma sociedade antiga, com até dois milhões de pessoas. Este império da Amazônia brasileira era sustentado pela abundância de alimentos proporcionada pela riqueza biológica local.
O principal legado da Machu Picchu brasileira não está, porém, tão à vista quanto o da peruana e sim no solo rico em carbono. Segundo Moura, a chave da despensa a céu aberto criada no local, que possibilitou sustentou uma grande população antiga, era o domínio da técnica de produzir terra preta e fértil, rica em carbono.
Créditos de carbono podem render R$ 12 milhões por ano
A área de atuação do MuCA já foi regularizada para gerar créditos de carbono. O potencial de faturamento é de R$ 12 milhões por ano, informa Moura, mas isso é apenas um dos componentes do projeto. Os créditos de carbono serão uma consequência do manejo florestal sustentável que está gerando madeira para exploração comercial e espécies sombra, plantadas sob as árvores, para produzir alimentos e fitoterápicos.
“Estamos falando com várias empresas, como a Shell, para compensar o carbono deles aqui”, informa Moura ao Carbon Report.
A produção de madeira rastreada de maior valor agregado, os bioinsumos e o turismo é que vão gerar o grosso da renda em benefício das 26 comunidades – três delas indígenas – que ocupam a área. A realização dessas atividades também visa reforçar a identidade amazônica e garantir a fiscalização e a proteção do território. “Não é o carbono pelo carbono”, assinala.
Madeira com valor agregado pode render R$ 4 bilhões
O manejo sustentável do território já produz 50 mil m3 de madeira por ano, com um faturamento de aproximadamente R$ 50 milhões anuais. Para atingir o potencial de até R$ 4 bilhões anuais com a venda da mesma quantidade do material, ainda são necessários avanços como a conclusão do sistema de rastreabilidade.
A rastreabilidade está sendo buscada em parceria com o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), que também vem trabalhando no projeto de beneficiamento da madeira. “Devemos lançar ainda este ano o sistema online de rastreabilidade que vai cruzar dados de diversos órgãos, como a Polícia Federal, e incluir informações sobre o DNA da madeira. Se a polícia pedir, em duas horas o MuCA emite o laudo, com base no seu banco genético, que inclui as amostras de DNA das plantas”, explica.
Hoje, a madeira produzida no local é quase toda exportada em estado bruto, mas está em curso o projeto de transformá-la em móveis de design com personalidade amazônica e preços proporcionais. Uma mesa assinada pelo arquiteto Arthur Casas, um dos profissionais que estão desenhando itens de movelaria de luxo em parceria com o MuCA, pode ser vendida por R$ 50 mil.
O volume de madeira usado num móvel desses é baixíssimo, comparado ao valor da peça: o mercado premia a exclusividade e aceita pagar muito por menos material nos objetos de alto luxo, como os pequenos frascos de perfume francês.
Cortar árvores é desmatar?
Nem sempre. O manejo sustentável de áreas para exploração comercial permite gerar renda e aumentar o estoque de carbono. Isso ocorre por meio do corte seletivo das plantas que chegaram à maturidade e já não sequestram tanto carbono quanto durante o seu processo de crescimento. De acordo com Moura, quando uma árvore grande é derrubada, a luz entra na floresta e diversas outras, que já estão lá embaixo esperando uma oportunidade, crescem.
“As árvores capturam menos carbono em sua fase adulta. Quando você derruba, 50 árvores, outras vão nascer ali e a retenção de carbono será muito maior. Numa área de 540 km2, esse manejo significa que você corta uma área e só vai voltar lá 30 anos depois.”
Os quintais agroflorestais criados sob as árvores em crescimento também incrementam a rendas. O adensamento dessas áreas é feito com espécies de alto valor agregado (como a andiroba e a copaíba), além de alimentos potentes para a regeneração do organismo humano (como a cúrcuma, o gengibre, o cacau e a spirulina) e plantas medicinais.
O primeiro quintal-escola do MuCA fatura cerca de R$ 60 mil mensais por hectare e tem potencial de chegar a uma receita de R$ 100 mil mensais por hectare. Um dos mais promissores é o de biocosméticos.
Em parceria com a Amyris Brasil, conglomerado americano sediado no Vale do Silício, o MuCA está desenvolvendo produtos de beleza e aromas naturais de alta eficiência e baixo impacto para o planeta. Outra parceria está sendo iniciada com a Costa Brazil, marca de produtos luxuosos com pegada sustentável que acaba de chegar ao país. Já a Weleda, empresa suíça especializada em cosméticos naturais sustentáveis deverá começar a usar os bioinsumos da Amazônia em seus produtos ano que vem.
Casas de madeira para o Minha casa, minha vida
Produzir casas pré-fabricadas é mais uma maneira de agregar valor à madeira. O MuCA quer que o governo apoie a construção de casas de madeiras amazônicas: “Em vez de mandar a madeira para casas de luxo na Europa, ela também deveria ser usada para construir casas populares na Amazônia, proporcionando grande conforto acústico e térmico aqui”, diz ele.
“Temos até um modelo para o programa Minha casa, minha vida tropicalizado”, acrescenta. “Estamos nos aproximando, mostrando a madeira da Amazônia como solução.”
Moura critica o fato de os programas governamentais estimularem as construções de concreto na Amazônia: “vendemos barato a madeira de alto valor, que sai daqui em estado bruto, importamos o concreto mais caro do país e ainda perdemos identidade”, diz ele. De olho em iniciativas como o recém-lançado Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), os arquitetos parceiros do MuCA desenvolveram os primeiros protótipos das casas pré-fabricadas de madeira amazônica.
O MuCA criou uma escola de carpintaria para formar mão de obra local e conseguir ganhar escala. Depois das primeiras oficinas realizadas, a ideia é inaugurar módulos específicos de carpintaria no próximo trimestre, em parceria com o arquiteto Marcelo Aflalo. O passo seguinte será desenvolver as técnicas construtivas.
Turismo e gastronomia
A aposta no turismo da Machu Picchu brasileira também é grande. As visitas ao museu, instalado num conjunto arquitetônico desenhado pelo arquiteto Gino Caldatto Barbosa e interior (inclusive móveis) criado pelo Studio Arthur Casas, ainda são reservadas apenas a cientistas e pesquisadores. Mas isso está prestes a mudar.
Até agora, o MuCA é um centro de ciência de tecnologia da selva, que funciona como sede do Polo de Bioeconomia da Amazônia. Porém, a ideia é também explorar o turismo, uma forma de gerar mais renda e identidade para o território.
O museu ocupa a área da antiga Vila Americana, um conjunto arquitetônico que está sendo revitalizado pelo Studio Arthur Casas. A mesma empresa assina um hotel com 12 suítes, uma pousada com seis suítes e um centro de convenções a serem construídos no local.
Como parte da estrutura de apoio à atuação do MuCA, está sendo criado ainda o Centro da Cultura Alimentar Tapajônica, em parceria com o premiado restaurante Casa do Saulo, do chef Saulo Jennings Simões, especializado em receitas com ingredientes da região.
O centro gastronômico funcionará em uma casa original da década de 1930, em processo de revitalização, e formará mão de obra local. Além de gerar renda, vai aumentar a visibilidade da diversidade gastronômica da Amazônia.
Terra preta é o diferencial
Todas essas atividades econômicas estão sendo possíveis pela peculiaridade do território onde o MuCA está. A terra preta é um legado antigo que viabiliza a combinação de geração de renda com combate às mudanças climáticas, aumento da segurança alimentar e biológica.
Segundo Moura, existe uma vasta literatura científica sobre a terra preta indígena e sua capacidade de transportar componentes para as plantas e os alimentos. “Estamos falando não só de reter carbono por meio das árvores, mas também da relação daquele solo com a microbiota – microorganismos que habitam o nosso corpo – humana e o seu poder de regeneração.”
Outro efeito é o de fiscalização da floresta. Quando o cacau, por exemplo, é plantado em áreas de sombra, sob as árvores, a comunidade redobra a atenção naquele ativo. A vigilância sobre o território mantém a floresta em pé.
“Veja o caso do açaí. Antes, o palmito é que era vendido. Depois, a fruta passou a valer mais. Derruba um pé de açaí que você vai ver o que acontece”, desafia Moura.
É nessa lógica que o MuCA está construindo os chamados quintais de alto valor agregado, inspirados no que o povo antigo já fazia: agricultura sob a floresta primária fincada na terra preta. O objetivo é proteger o território e fornecer componentes dessa biodiversidade de alta potência para a saúde humana.
“Estamos sobre o solo que mais transporta minerais e fitoquímicos para os alimentos. Isso é importantíssimo num planeta enfraquecido, em que os alimentos perderam minerais e fitoquímicos”. Moura destaca que o empobrecimento do solo está na origem de surtos de doenças como a Covid 19, por seu impacto na qualidade da alimentação, e das mudanças climáticas, pela perda de capacidade dos solos degradados de absorção de carbono.
O domínio da técnica de produção da terra preta e a lógica de “morar dentro da despensa” fez toda a diferença para os antigos habitantes da Amazônia: “Onde estamos é a maior mancha de terra preta do planeta”. Produzida pela atividade humana, a terra preta é uma tecnologia ancestral que a ciência atual ainda não conseguiu desvendar totalmente.
O Butantan da Amazônia
O MuCA surgiu para ser a base do Instituto Butantan na Amazônia, pelo fato de os antivenenos existentes não funcionarem ali. Hoje, sabe-se que isso acontece porque a terra preta local tem uma potência biológica muito grande, que diferenciou tudo: “Quando uma pessoa é picada por um escorpião negro daquele território, o soro produzido pelo Butantan em São Paulo, a partir do veneno da mesma espécie, não tinha efeito”, diz ele.
Para uma planta ou animal se desenvolver naquele local, precisa criar mecanismos de defesa apurados e se diferenciar. Aí está a origem de tanta riqueza biológica.
O diretor do MuCA trabalhou durante 15 anos no Butantan, período em que o Instituto contratou uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP) como posto avançado na Amazônia. “Quando o contrato foi encerrado, ficamos com esse legado”, resume.
A instituição é presidida pelo ex-diretor do Butantan, Otavio Mercadante, tem uma diretoria da qual Moura faz parte e um conselho, formado por representantes de entidades como o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e da federação que reúne as 26 comunidades locais.
O museu ficou com o acervo genético e biológico herdado do Butantan, atuando como um instituto de tecnologia e pesquisa qualificado pelo Ministério da Ciência e Tecnologia. Agora, está criando um banco de sementes de espécies desenvolvidas na terra preta amazônica.
Segurança jurídica
A primeira etapa de criação do MuCA focou a segurança jurídica e regulatória, devido à complexidade do território da Floresta Nacional do Alto Tapajós (Flona Alto Tapajós), onde está inserido. Esta é uma unidade de Conservação Federal cuja exploração de atividades econômicas foi concedida às 26 comunidades locais. O MuCA tem mandato para desenvolver ali o polo produtivo madeireiro, não madeireiro e turístico, por meio de um contrato regulado pelo ICMBio.
Depois da segurança jurídica para atuação do setor privado, o passo seguinte foi organizar um portfólio de produtos com potencial para a indústria de alimentos, de biocosméticos e fitofarmacêutica. A estratégia final é transformar o local em um vale bioeconômico.
Em parceria com a Universidade federal do Oeste do Pará (Ufopa) e institutos de pesquisa parceiros, o MuCA vai desenvolver em seu Laboratório Avançado de Selva estudos com animais, plantas e microrganismos com alta relevância biológica para análise de alimentos, biocosméticos e fitofármacos florestais. Hoje já são 100 componentes em estudos avançados. “Temos três reinos a serem pesquisados: o vegetal, o animal e o maior de todos, o microbiológico, que está no solo”, detalha.