A especialista em negócios com a União Europeia, Camila Lefèvre, diz ao Carbon Report que as empresas brasileiras ainda estão “meio perdidas” com novas regras comerciais do bloco
Mariza Louven
As empresas brasileiras ainda não estão se mexendo muito para atender aos novos requisitos de descarbonização da União Europeia, afirma a advogada Camila Borba Lefèvre, sócia do Vieira Rezende Advogados. “Parece que estão meio perdidas”, acrescenta. Enquanto aguardam os desdobramentos da regulação do mercado de carbono no Brasil, algumas companhias chegam a cogitar redirecionar seus esforços para países como China e Rússia, onde as exigências não são tantas.
“Tem muita movimentação é nas entidades setoriais de classe”, observa Lefèvre em relação ao imposto sobre o carbono que será cobrado na fronteira europeia a partir de 2026, mas que precisa começar a ser calculado a partir do próximo dia 1º de outubro. A taxação está prevista no mecanismo de ajuste de carbono de fronteira (Carbon Border Adjustment Mechanism – CBAM).
“Não tenho visto as empresas realmente se mexerem para se adaptar ao CBAM, mas elas precisarão fazer isso a partir de agora. Aí a gente vai ver se a regra realmente impacta muito o Brasil. Por causa da nossa matriz energética mais limpa, pode até ser que o país seja competitivo”, opina.
O problema, diz ela, é que será preciso comprovar essa competitividade baseada na matriz energética mais limpa. “Tem que conseguir demonstrar”, assegura. Como ainda não existe regulamentação sobre as emissões de carbono no Brasil, as empresas estão em compasso de espera. O projeto de regulamentação do mercado de carbono brasileiro está no Senado e a expectativa do governo é de que seja votado ainda este ano.
Autorregulação
Na falta da regulamentação, segundo ela, existe muita movimentação setorial. Vários setores estão se unindo, por meio das associações, para estabelecer metas de redução de emissões e até para criar certificações. É o caso do segmento de energia elétrica. A Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), por exemplo, está criando uma certificação para comprovar que a matriz energética brasileira é limpa, informa. Esta iniciativa está relacionada aos investimentos na produção de hidrogênio verde no Brasil.
É preciso comprovar que o hidrogênio é realmente verde, produzido com energia limpa. “Ou o governo regulamenta ou haverá uma autorregulação setorial, que vai certificar a matriz e dizer que uma determinada atividade foi produzida emitindo tantas toneladas de carbono”, explica.
Descarbonização ou proteção comercial?
A União Europeia não está impondo uma ou outra regra e sim um grande pacote de exigências que vai além das emissões de carbono. Atender aos requisitos pode ser um treino para o que também virá dos Estados Unidos. A Comissão de Valores Mobiliários (Securities and Exchange Commission – SEC) do país está para colocar em prática sua própria regulação para relatos de emissões de gases de efeito estufa, que tornará mais complicado fazer negócios com a maior economia do mundo.
“Essas regras têm uma dupla função de reduzir as emissões e de proteção comercial”, opina Lefèvre.
Várias medidas estão sendo adotadas pela União Europeia com a intenção de reduzir as emissões de carbono do bloco em 55% até 2030, o chamado objetivo 55. São regras muito rígidas, com efeito extraterritorial.
“Estou vendo entre os nossos clientes é que, de uma hora para outra, eles têm que criar uma área de ESG, porque a matriz lá fora está pedindo reports”, diz a especialista no assessoramento de empresas europeias com atividades no Brasil e de brasileiras com negócios no velho continente, sobre as novas regras da chamada taxonomia verde europeia, em vigor desde o início deste ano.
A taxonomia verde é um conjunto de reports que as empresas europeias precisam fazer para captar recursos no mercado financeiro. “Elas passaram a ter que relatar aos investidores como as suas atividades afetam o meio ambiente, não só em termos de emissões de carbono, mas também em relação à preservação da biodiversidade, poluição e vários critérios objetivos.
Não basta dizer que um fundo de investimento é verde ou sustentável, exemplifica. Tem que provar.
“Essa é uma regra muito impactante, que tem efeitos no mercado brasileiro, na medida em que há empresas europeias no Brasil”, informa. A taxonomia também vale para empresas brasileiras com atuação na Europa.
A advogada cita o exemplo da Heineken, a companhia holandesa que tem uma grande operação no Brasil e ações listadas na bolsa de Amsterdam: ela precisa fazer esses reports.
Taxação de carbono na fronteira
Outra novidade é o CBAM, que estabelece uma taxação de carbono para produtos exportados para a União Europeia. Entra em vigor a partir de 2026, mas com um período de transição iniciado em outubro deste ano, quando os importadores da União Europeia terão que reportar o total de emissões de carbono embutido nos produtos que adquirirem do exterior. O imposto será cobrado, inicialmente, sobre cimento, ferro, aço, alumínio, fertilizantes e eletricidade.
Por que é preciso começar a se mexer agora? Porque as empresas terão que começar a calcular quanto emitem de carbono, de acordo com os protocolos estabelecidos, a partir do dia primeiro de outubro. Com base nessa emissão é que será cobrado o imposto que a ser pago na Europa, informa Lefèvre.
Estimar quanto carbono a empresa estaria emitindo se sua operação fosse na União Europeia também é uma maneira de evitar a competitividade injusta, diz ela. Afinal, complementa, na Europa as empresas têm que investir um monte de dinheiro para serem menos emissoras.
Um dos objetivos é evitar que uma empresa desloque a sua produção para outros países, reduzindo as emissões na Europa, mas continuando a emitir muito carbono no país de destino. O mecanismo funciona, também, como uma espécie de barreira comercial, admite Lefèvre.
Tem um duplo objetivo, de induzir a redução das emissões e impedir que um item produzido mais barato em outro país, onde não há investimento em descarbonização, compita em pé de igualdade com a produção europeia.
Rastreio de produtos
O rastreio de produtos para evitar que sejam oriundos de áreas desmatadas ainda não está em vigor, mas a aprovação da proposta pela União Europeia é tida como certa. Setores como o agronegócio brasileiro serão muito afetados pelas regras da chamada devida diligência. Por meio desse mecanismo, os importadores da União Europeia vão ter que fazer uma investigação e análise da procedência dos produtos que entram no continente, em toda a cadeia de fornecimento.
“Isso está dentro do mesmo pacote legislativo do CBAM, o chamado de Pacto Verde (Green Deal), que engloba várias regulamentações. Incluiu essas citadas e outras que abrangem também setores como os de aviação e transporte marítimo”.
A regra da devida diligência afeta diretamente o Brasil, porque abrange itens como óleo de palma, carne bovina, madeira, café, cacau, borracha e soja. “São produtos que precisarão de rastreio e comprovação de que não estão associados ao desmatamento, que foram produzidos em conformidade com a legislação aplicável no país. Precisarão de uma certificação de que foi feita a devida diligência”.
Essa diligência não só engloba a questão do desmatamento, mas também direitos humanos. Será preciso fazer uma investigação para saber que não houve, em toda a cadeia de logística, uma infração aos direitos humanos e desmatamento. Se isso não for comprovado, o produto simplesmente não entra na Uniao Europeia.
Segundo Lefèvre, as empresas estão conscientes de que precisarão realizar o rastreio em sua cadeia de produção, principalmente o setor da carne, que tem fornecedores muito espalhados.
“No fundo, a regra de devida diligência também acaba sendo uma medida protetiva. Vejo algumas empresas falarem que, como no Brasil não tem essa regulamentação, que teria que ser criado um sistema para rastrear e fazer a diligência. Algumas dizem até que, se não puderem exportar para a Europa, vão exportar para a Rússia, para a China. Já a Europa está dizendo: não vejo porque um grande frigorífico, como o JBS, não introduzir um sistema de rastreabilidade. São as discussões que estão acontecendo”, acrescenta.
Exportação de regras
A “exportação” de regras não é uma coisa nova, assinala Lefèvre. Aconteceu, no passado, por exemplo, em relação à anticorrupção. As medidas surgiam nos países desenvolvidos e eram levadas a outros países. É o caso da Lei de Práticas de Corrupção no Exterior (Foreign Corrupt Practices Act – FCPA, uma lei anticorrupção americana. “Isso acaba tendo consequências positivas e negativas”, opina a advogada.
“Vejo que, principalmente na Europa, até por pressão política, a redução das emissões de carbono é o assunto mais importante do debate hoje em dia”, comenta. Mas existem outras diretivas englobando setores em que não há risco de envolvimento direto com o desmatamento, por exemplo, e valem até para um escritório de advocacia que presta serviços para clientes europeus: será preciso responder a um questionário sobre respeito aos direitos humanos, cumprimento das regras locais, inexistência de atividades com impactos adversos ao meio ambiente.
Outra polêmica envolve o fato de que os países desenvolvidos, de fato, já impactaram e ainda impactam muito o meio ambiente, mas estão imponho regras aqui que vão dificultar o nosso comércio exterior. A advogada não concorda, porém, com o argumento de que se eles já desmataram, nós também podemos desmatar: “A gente tem que aprender a se beneficiar do nosso meio ambiente. Mas, para isso, precisamos fazer o dever de casa, ter nossos padrões, nossas certificações, conseguir demonstrar que a nossa matriz energética não emite tanto carbono. Não adianta só falar”.
Interesse no Brics amplia chance de redirecionar exportações?
Essa é a pergunta de um milhão de dólares, segundo Lefèvre. “A Europa está apostando no seu poder e tentando impor diretrizes ao resto do mundo, mas não é inteligente o Brasil se opor a isso, porque o país tem um potencial enorme de explorar o seu ativo ambiental. O Brasil não deve adotar a mentalidade de que existe uma contradição entre proteger o meio ambiente e o crescimento econômico, de que desmatar é igual a riqueza, de que isso que a Europa está fazendo é injusto. A gente tem que mudar o nosso mindset: aproveitar o ativo biológico e criar padrões para poder exportar para Europa”.
Lefèvre acredita que as empresas mais sérias vão ver as novas regras como uma oportunidade: “Meu desejo é que o governo brasileiro também identifique essa oportunidade e crie as condições para que as empresas a aproveitem”.
Da teoria à vida real
“O que a gente tem visto muito no escritório são projetos de carbono na Amazônia, relacionados à preservação de floresta em pé”, relata Lefèvre. São iniciativas concretas que, na opinião dela, confirmam o grande potencial do Brasil de gerar riqueza com seu ativo ambiental.
“Só que não existe, ainda, um marco regulatório que possa trazer segurança para esses projetos, fazer essa riqueza ser canalizada de fato para a população local, preservando a natureza”, acrescenta.
Sobre as críticas aos créditos de carbono relacionados à manutenção das florestas existentes, ela responde objetivamente: “O que está faltando para o Brasil explorar esse ativo? vamos criar um marco regulatório.”
Segundo ela, aumentou também o interesse de empresas em desenvolver projetos sustentáveis de exploração de madeira para exportação. “Aí, realmente, é um produto premium, com uma qualidade que não existe em outros países. São projetos de reflorestamento, muitas vezes agrofloresta e silvicultura. É possível explorar de forma sustentável e ter outros produtos, como açaí, palmito e ainda créditos de carbono. Recentemente, visitei um projeto desses, em fase de captação de investimentos. É um eldorado verde.