Primeira planta onshore de CCS no país está sendo implantada em Mato Grosso pela FS, produtora de etanol de milho. Objetivo é testar tecnologia BECCS de sequestro e estocagem geológica de CO2
Mariza Louven
Os biocombustíveis brasileiros estão contrariando a lógica global de que as indústrias pesadas e de difícil descarbonização vão liderar o uso das tecnologias de captura, transporte e armazenamento de carbono (Carbon Capture and Storage – CCS). Aço, cimento e petroquímicos são produtos intensivos em CO2, mas é o etanol de baixo carbono que deve puxar esses investimentos, prevê a advogada Isabela Morbach, consultora do Campos Mello Advogados e uma das fundadoras do CCS Brasil.
Num cenário de mercado de carbono e de CCS regulados, em processo de concretização no Brasil, produzir biocombustíveis totalmente neutros em carbono e capturar CO2 a um custo baixo aumenta a perspectiva de lucro. O sequestro de emissões de gases de efeito estufa é mais barato no setor e ainda gera créditos de remoção, considerados premium e mais valorizados do que os de compensação de carbono.
Isso eleva o potencial da chamada bioenergia com captura e estocagem de carbono (Bioenergy Energy with Carbon Capture and Storage – BECCS) para cerca de 40 milhões de toneladas de CO2 por ano no Brasil. “É mais ou menos o que o mundo tem hoje operando em CCS”, afirma Morbach. “A indústria de biocombustíveis é a que tem maior potencial de, efetivamente, lucrar com CCS no país”, completa.
A Comissão de Meio Ambiente do Senado aprovou o Projeto de Lei que regula as atividades CCS no fim de agosto deste ano e o de regulamentação do mercado de carbono nesta quarta-feira (4/10). Ambos ainda terão que ser revisados pela Câmara.
Com relação ao projeto que regula as atividades CCS, Morbach diz que a expectativa, agora, é de definição do relator e quanto ao despacho inicial do presidente da Câmara, Arthur Lira, sobre qual será o rito: se é urgente, por quantas comissões vai passar etc.
“Acredito que os projetos de lei para regulação do mercado de carbono, de CCS e dos combustíveis do futuro (também já enviado ao Congresso pelo governo) têm muito apelo para serem aprovados entre o fim deste ano e o início de 2024”, avalia Morbach.
Primeiro projeto CCS onshore
O primeiro projeto onshore de CCS no Brasil é da FS, pioneira e maior produtora de etanol de milho no país. A empresa planeja capturar o CO2 liberado na produção do biocombustível na sua usina em Lucas do Rio Verde, Mato Grosso. Este piloto servirá para a indústria como um todo, prevê o sócio da área de energia do Campos Mello Advogados, Alexandre Calmon.
No sistema BECCS que a FS está instalando, o CO2 será capturado, comprimido e transportado para armazenamento subterrâneo. O poço para a injeção do carbono terá dois quilômetros de profundidade.
A FS está agora fazendo o levantamento geológico a fim de confirmar se as áreas de interesse para armazenamento são compatíveis, conforme os indícios indicam, assinala Calmon. Só então a empresa fará a perfuração e construirá toda a infraestrutura.
“O que a FS quer é ter um produto com pegada neutra de carbono. A mesma lógica também se aplicaria a uma siderúrgica e a vários outros processos industriais hard to abate, ou seja, de difícil descarbonização”, afirma Calmon.
Além da FS, o Campos Mello assessora uma empresa especializada em levantamentos geológicos que vem sendo procurada por produtores de biocombustíveis brasileiros interessados em CCS. “Sabemos que existem outros olhando para esse mercado. Começamos a ser demandados por clientes”, complementa o advogado.
Calmon informa que o escritório tem atuado muito em transição energética e em estratégias de descarbonização: “CCS é fundamental dentro das estratégias de descarbonização da indústria. Existe um consenso de que não será possível atingir as metas de neutralidade de carbono, o net zero, só com a transição energética.”
Dupla captura de CO2
O setor de biocombustíveis tem tudo para aproveitar a vocação do Brasil como produtor e aumentar sua exportação não apenas de baixo carbono, mas totalmente descarbonizada. O país é hoje o segundo maior produtor de biocombustíveis do mundo, atrás dos Estados Unidos e pode ir além.
Nessa atividade, a captura de carbono pode ser dupla: feita pela natureza, por meio da fotossíntese na plantação do milho ou da cana; e tecnológica, para sequestrar o CO2 liberado no processo de fermentação. “É uma super oportunidade para o Brasil”, garante Morbach.
Na avaliação dela, a tendência é de que as 40 milhões de toneladas de CO2 possíveis de serem capturadas pelo setor de biocombustíveis brasileiro possam ser apenas uma linha de base. Para isso se confirmar, são necessários incentivos, como os previstos no Projeto de Lei do Combustível do Futuro, e o governo priorizar os biocombustíveis, conforme anunciado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva na reunião do G20.
O custo pesa
CCS é custo, segundo Morbach. “O processo é caro, não é barato”, revela. Em média, são gastos em toda a cadeia de captura entre US$ 60 e US$ 110 por tonelada de carbono”. Por isso, a regulamentação do mercado é fundamental. Viabilizará economicamente o recolhimento do CO2 e evitará a dispersão do poluente na atmosfera.
“Faz pouco sentido uma indústria siderúrgica, por exemplo, investir R$ 300 milhões em CCS se a sua vizinha não tem que descarbonizar. O produto dela ficará mais caro”, exemplifica. Um dos principais aspectos da regulação é definir os setores que estarão sujeitos a limites de emissões e ter previsibilidade das obrigações de descarbonização.
O custo da captura do carbono pode variar muito, mas é menor na produção de biocombustíveis. Isso porque a fermentação da cana ou do milho libera um CO2 com 99% de pureza, sem necessidade de separação do dióxido de carbono de outros gases.
Segundo ela, a etapa de captura do carbono é a mais cara e não o armazenamento, como a maioria das pessoas pensa. Por isso, os maiores projetos de pesquisa e desenvolvimento no mundo têm sido focados neste processo, levando a crer que a curva de custo cairá.
A captura é mais cara por causa do valor dos equipamentos. Em CCS, o mais caro é o capex (Capital Expenditure) ou despesa de capital, dinheiro necessário para a compra de máquinas, por exemplo. As políticas que estão dando certo no mundo incluem incentivo direto para ajudar no capex, comenta.
O modelo de negócio que tem sido desenhado e desenvolvido em outros países é baseado na definição de mercado regulado e de incentivos diretos. É o caso dos Estados Unidos, com o Inflation Reduction Act (IRA) e outros incentivos.
Na avaliação dela, no Brasil, esse impulso poderia vir de instituições como o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e de fundos multilaterais.
Royaties do petróleo para destravar projetos
A precificação do carbono é um incentivo econômico para que as atividades CCS avancem. Outro é o uso de recursos de royalties do petróleo para o desenvolvimento de projetos de demonstração como o da FS.
Os projetos CCS usam tecnologias maduras, mas não específicas. Por isso, há um “movimento bem interessante de fazer projetos de demonstração para reduzir e mapear risco, em que o uso de recursos de royalties do petróleo destinados à pesquisa, desenvolvimento e inovação é muito importante. Essa é vista hoje, no Brasil, como uma das principais fontes de financiamento para destravar CCS”, diz ela.
Por sua importância para o desenvolvimento do mercado, a regulação e o financiamento serão o foco do seminário “Conexão CCS: Mercado de Carbono e a Integração de Financiamentos Públicos e Privados para implementação de projetos”, realizado nesta quinta-feira (5/10) pelo CCS Brasil – uma organização sem fins lucrativos criada para promover a cooperação entre academia, governo, financiadores, indústria e sociedade em torno dessas atividades. O evento tem o objetivo específico de discutir gargalos de financiamento e a percepção de investimento público e privado.
Renováveis são trunfo
As energias renováveis também podem viabilizar outro grupo específico de tecnologias CCS, a chamada captura de carbono diretamente do ar (Direct Air Capture – DAC), em que a disponibilidade e custo da energia pesam mais.
“Se a gente sai de biocombustíveis e olha para DAC, temos aí outra potência no Brasil”, avalia Morbach. “O grande gargalo de DAC é ser intensiva em energia para movimentar as hélices usadas na captura do carbono, mas a disponibilidade de renováveis ajuda nessa conta.”
Não faria sentido mover hélices a diesel. O que o Brasil tem de interessante nessa seara é que está prevendo um aumento da produção de renováveis muito grande. A expectativa é multiplicar hidrogênio, solar, eólica. “Se conseguir implantar toda essa energia renovável, vai ter excedente. Este é o cenário ideal para DAC”, prevê a especialista.
Existe ainda uma rota de produção de hidrogênio pela reforma do gás natural, processo em que é possível capturar o CO2. O Brasil tem aí ouro potencial, por sua capacidade de armazenamento e porque dispõe de gás natural em abundância.
Transporte: carboduto, navio, caminhão ou trem?
O custo de CCS pode variar dependendo do transporte. No Brasil, o carbono capturado e comprimido deve ser transportado principalmente por dutos e navios, devido ao potencial offshore do país. Já existem empresas que estão se assenhorando do tema, comenta Morbach.
Qual é a grande sacada para reduzir esse custo? Identificar fontes de CO2 múltiplas e próximas do local de captura do carbono, que podem usar um duto comum. As empresas se conectariam a um grande tronco de transporte.
“Os países que estão na frente em CCS são os que conseguiram planejar um cluster industrial ou um hub de CO2 em que, literalmente, de forma estratégica, é construída uma estrutura comum de transporte por duto, pensando nas principais fontes estacionárias próximas”, acrescenta a especialista.
Existem alguns hubs possíveis no Brasil, que vão se aproveitar dessa proximidade entre indústrias. É o caso de São Paulo, um cluster industrial importante.
Armazenamento exigirá planos de contingência
Na etapa de armazenamento, segundo ela, o custo não é a principal questão. Varia menos e fica em torno de US$ 13, em média, por tonelada de CO2. O problema maior é a segurança contra vazamentos que causem impactos ambientais negativos.
O projeto de lei de regulação das atividades CCS prevê que a outorga dos reservatórios geológicos seja por meio de autorização e não de concessão – como ocorre no setor de petróleo e gás. Neste caso seria necessário realizar licitações, mas para autorizar, não.
No entanto, visando garantir uma disputa justa do setor privado pelas áreas de armazenamento, será preciso realizar um chamamento público para saber se há outros interessados.
A segurança dos reservatórios não pode ser minimizada. “Toda atividade tem risco. Quem disser que não tem risco de vazamentos para o meio ambiente está mentindo”, comenta Morbach. Ainda assim, o risco mapeado no mundo é baixo. Uma atividade externa ou uma atividade sísmica, pouco comum no Brasil, poderia resultar em um vazamento. Por isso, de acordo com Morbach, uma das maiores fronteiras é o desenvolvimento de tecnologias de monitoramento desses reservatórios.
Os locais adequados são bem específicos: a rocha reservatória precisa ser porosa e permeável para poder preenchida com CO2 comprimido. Em cima dela é adicionada uma rocha selante, sem poros e sem permeabilidade.
Uma exigência do PL 1.425, que regula a atividade CCS, é de que no pedido de autorização para armazenamento seja apresentado um plano de contingência. O PL tem um capítulo inteiro sobre monitoramento.
Existem menos de 50 projetos de CCS em implantação no mundo, um deles no Brasil – realizado pela Petrobras, que há anos injeta CO2 em reservatórios geológicos A empresa pode fazer isso, mesmo sem ainda existir regulação no país, porque o armazenamento do carbono feito pela petroleira não é o chamado CCS puro e sim em decorrência da própria atividade.
Elo de ligação
Segundo Morbach, existe um desconhecimento grande sobre CCS, que envolve indústrias muito diferentes. Não só a do petróleo, mas também a de etanol, a indústria pesada e a de geração de energia, por exemplo, especialmente termelétrica. Cada uma tem sua expertise.
CCS, em si, também é uma indústria em cadeia, cujas etapas são muito diferentes, envolvendo desde a captura, o transporte e o armazenamento. Os interessados na captura podem ser diversas indústrias, enquanto o transportador é uma figura intermediária. Já a etapa do armazenamento geralmente é desenvolvida por integrantes do setor de petróleo, “que fazem a curva do conhecimento mais fácil.”
A constatação de que faltava um elo de ligação entre as diversas indústrias, no interesse comum de captura, transporte e armazenamento de CO2, levou à criação do CCS Brasil. A ideia foi amadurecida durante a elaboração da tese de doutorado de Morbach, aprovada em 2022 pela Universidade de São Paulo (USP).
O trabalho analisou o arcabouço jurídico-regulatório para o desenvolvimento de projetos de CCS no Brasil, a partir da primeira petição que deu origem ao projeto de lei sobre CCS. Morbach também participou do subcomitê ProBioCCS do projeto Combustível do Futuro, que estudou o desenvolvimento arcabouço legal e regulatório para CCS.
Identificamos que faltava uma organização que fosse capaz de fazer esse alinhamento entre as etapas e traduzir os interesses dessas indústrias, diz ela. Havia um vácuo, que precisava ser ocupado.